segunda-feira, 4 de junho de 2007

Nada mudou.

Quem não aprendeu, em Michelet ou Ginzburg, o que era o sabá, pode agora saber lendo as notícias sobre as últimas perversões descobertas nos bailes funk. Sintetizemos os movimentos dessa nova iniciativa para criminalizar o lazer da juventude pobre e negra.
1º movimento. Um jornal, O DIA, publica declarações do secretário municipal de saúde acerca da possível gravidez de jovens frequentadoras de bailes funk, causada por uma dança coletiva, do tipo “trenzinho”, durante a qual algumas moças manteriam conjunção carnal com diversos rapazes. Uma assessora confirmou ter recebido tal versão de uma dessas moças – que certamente jamais imaginou o sucesso que sua narrativa, eventualmente orientada a dissimular uma paternidade que ela deseja encobrir de sua família, faria.
2º movimento. Autoridades do sistema penal se manifestam sobre o fato: as reuniões festivas funk ganham coloraturas orgíacas. Todo o arsenal criminalizante do código penal de 1940 – que, para este fim, já não parece ultrapassado – é percorrido por operadores do sistema penal.
3º movimento. Um juiz expede os mandados necessários para que a polícia trate de intervir nos bailes e impor entre os alegres vagões do “trenzinho” uma distância compatível com os elevados padrões morais de nossa sociedade. As diligências não conseguem comprovar a hipótese inicial, mas descobrem dois ou três adolescentes ingerindo bebida alcoólica, que é o quanto basta.
Eis tudo. O assunto certamente desaparecerá da imprensa. O que podemos aprender com isso?
Pode perfeitamente ter ocorrido que alguma(s) adolescente(s) tenha(m) se engravidado em bailes funk. Será uma novidade? Quantas moças brancas de classe média não se engravidaram em boates e discotecas? Ocorre que o secretário de saúde só dispõe de poderes para intervir e pronunciar-se sobre a gravidez das meninas pobres, que a relatarão em postos de saúde municipal, e não em clínicas de Botafogo. Admitamos que o secretário tenha de boa fé acreditado na versão que tornou pública, certamente com autorização de sua(s) cliente(s), cuja identidade preservada se revelaria na originalidade do caso, pelo menos nos limites da vizinhança. Sua iniciativa teve como resultado visível alavancar repressão penal sobre todos os participantes de todos os bailes funk. E aí aprendemos que, na prática, a saúde e o lazer dos pobres continuam sendo em nossa cidade um caso de polícia.

Não tenho nenhuma simpatia pelo gênero musical alienante tipo “Tigrão” e correlatos, como tenho pelos Racionais e tinha pelo MV Bill até vê-lo, muito constrangido, em frente às câmeras, purgando-se na cerimônia de martelar umas velhas armas. No Rio de Janeiro, o lazer dos pobres sempre foi criminalizado, desde os tempos do Vidigal, e a saúde pública constituiu historicamente um grande pretexto para remoções e vigilância, dando surgimento às metáforas da “insalubridade social”. Parece que nada mudou.

Nilo Batista Advogado & Ex-governador do Estado do Rio de Janeiro

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